
Era uma vez um bairro...que tem desaparecido de documentos oficiais, mesmo presente na memória
Fomos tentar descobrir o que aconteceu com o Higienópolis, na região central de Ribeirão Preto
Duas correspondências quase idênticas, separadas pela data e pelo nome do bairro inscrito no endereço do destinatário, chamaram a atenção da engenheira de alimentos Silvia Helena Campos Samara. Desde que nasceu, ela mora na região central e atualmente reside com a família em uma casa na rua Marcondes Salgado, a menos de uma quadra da avenida Nove de Julho, em Ribeirão Preto. As certezas sobre o próprio endereço param por aí. “Desde sempre eu moro no bairro Higienópolis”, diz ela. Mas admite que há pelo menos dez anos as cartas e contas que chegam pelos Correios são endereçadas ao Centro. Mesma casa, mesmo local. Bairro diferente.
Curioso, o caso de Silvia não é o único. Outros moradores e comerciantes mais antigos confirmam a mudança. Para a mediadora e sommelier Luciane Bellini, Higienópolis sempre foi conhecido como o bairro localizado na região próxima das avenidas Nove de Julho e Independência. “Foi uma área construída para abrigar famílias tradicionais, assim que o Centro foi se inflando com comércio e outros serviços”, explica. Ela mora há mais de 20 anos no prédio chamado Higienópolis, na rua Rui Barbosa. “Nós usamos a Catedral católica para separar o que é o Centro e o Higienópolis, sempre foi assim”.
Luciane ainda faz parte de um grupo que tem no nome outra referência à região. A Organização Não Governamental Amigos do Higienópolis organiza ações para ajudar pessoas em situação de rua e animais abandonados. “Somos um grupo sem fins lucrativos dessa região que trabalha para tentar melhorar o entorno. Sabemos que os problemas sociais que o país enfrenta existem também no nosso bairro, intensificados pelo período de pandemia. Acredito que é nossa função ajudar para mudar isso”, comenta.
Silvia, hoje com 69 anos, se lembra bem da rotina de adolescente, de passear pela avenida mais próxima de casa para exibir a roupa nova e observar a movimentação de carros e pessoas no que, em sua memória, era um ambiente harmonioso e gentil. “Muito diferente do cenário de obras e abandono que a gente observa há algum tempo”, lamenta. Os pais dela escolheram morar na região, mas seus irmãos foram morar em outros bairros depois de adultos. Ela preferiu ficar. “Não pretendo sair daqui, independentemente do nome do bairro” declara.
A história do empresário Wesley Rios com o bairro é mais recente. Ele inaugurou seu bar há pouco mais de três anos, na rua Rui Barbosa, e tem sua preferência em relação ao nome do local. “Desde que estou aqui, estamos no Centro. A ideia de ficar mais próximo de tudo, de ter comércio perto, mas também poder morar com conforto, inclusive, fez com que eu me mudasse para a região recentemente. Eu moro no Centro”, diz.
O diretor do Conselho Regional de Corretores de Imóveis do Estado de São Paulo (CRECI-SP), Antonio Marcos Melo, afirma que “não houve nenhuma alteração em nomes de bairros. O que houve foi uma mudança de perfil da ocupação. Antigos e tradicionais moradores de Higienópolis começaram a chamar a região de Boulevard, por usos e costumes, enquanto os filhos e netos deixaram essa região”.
No meio imobiliário, não há discussão. O Higienópolis é um tradicional bairro de Ribeirão Preto. “Trata-se de uma região de boa mobilidade e acesso e, com a nova lei de uso de solo e diretriz urbana, haverá, em médio prazo, uma retomada da ocupação e valorização dos imóveis, desde que haja apoio do poder público para criar condições de revitalização”, conclui Antonio. Uma pesquisa na internet por imóveis à venda ou para locação no bairro Higienópolis apresenta pelo menos uma centena de resultados.
“Desde que moro nessa região, há mais de dez anos, todos dizem que, entre a rua Florêncio de Abreu e a avenida Nove de Julho, é Higienópolis. Mas o meu CEP sempre constou como Centro”, conta a dentista Adriana Cruz, que mora há mais de dez anos em um prédio na rua São José, entre as ruas Lafaiete e Florêncio de Abreu. “Há um certo preconceito de muita gente pelo fato de morar no Centro. Eu particularmente adoro”, conta.
Seja Centro ou Higienópolis, Durval Campos Júnior diz que seguiu os passos do pai por considerar a área estratégica do ponto de vista logístico. “Estamos próximos a avenidas que ligam regiões da cidade e perto do Centro, há transporte e serviços públicos próximos”, conta ele, que tem um açougue na esquina das ruas Prudente de Moraes e São José há 59 anos. “Antigamente era conhecido como Higienópolis, mas já faz bastante tempo que somos reconhecidos como Centro. Na verdade, isso pouco importa para quem está aqui hoje em dia, principalmente quando vemos a região em meio a obras sem fim. Acho que encerrar esse capítulo é o principal pra gente neste momento”.
Ele não sabe ao certo há quanto tempo o nome do bairro teria mudado. “Mudou, mas faz muito tempo”, diz. Luciane tem uma solução mais lógica. “O Centro tem a Única. O Higienópolis tem o Pão de Queijo du Zé”, brinca.
CONFUSÃO ANTIGA
O shopping Santa Úrsula, principal empreendimento comercial da região, foi inaugurado em 1999. Fica exatamente no ponto em que muitos dizem ser o início do Higienópolis e fim do Centro.
No trabalho de conclusão de curso “Shopping Santa Úrsula: Análise do impacto ambiental urbano”, a arquiteta e urbanista Camila Garcia Aguilera apresenta uma série de documentos e reportagens sobre a construção do empreendimento. Em cinco de janeiro de 2001, por exemplo, um texto publicado no jornal O Estado de S. Paulo fala de um raio que teria atingido o complexo situado no Centro da cidade. Já um artigo publicado pelo jornal A Cidade em 29 de setembro de 2000 fala em “aprovação do empreendimento por parte da comunidade do bairro Higienópolis”. Em sua pesquisa, Camila trata como “Centro velho” a região mais próxima da rua General Osório, o calçadão. E “Centro novo”, a região do Santa Úrsula. Por outro lado, diversos documentos da época da construção tratam a região como Higienópolis.
Para Cleiton Marinsech, atual superintendente do shopping, há muitas evidências de que o bairro existe ou existiu. “Quando consultamos o cadastro nacional de pessoa jurídica do shopping, por exemplo, nos deparamos com essa dualidade. Centro e Higienópolis para o mesmo endereço”, diz.
Além das evidências, o historiador José Antonio Lages ressalta a importância de conhecer a história de onde se vive. “A origem dessa região se confunde com a origem da cidade. Sabemos tratar-se da antiga Fazenda Barra do Retiro — o primeiro latifúndio de que se tem notícia na documentação (1834) — uma das áreas doadas para a Igreja começar a povoar o que hoje é o quadrilátero central”, explica.
A atual Lei Orgânica do Município de Ribeirão Preto, que estabelece as diretrizes para a alteração de nomes de bairros, logradouros (ruas, avenidas, praças) ou prédios públicos, prevê que uma mudança deve ser solicitada pelo Poder Executivo, passar por aprovação da Câmara Municipal e ter uma justificativa adequada baseada em critérios objetivos. Segundo o advogado Ricardo Alves Macedo, além desse processo, “a mudança precisa ser documentada e publicada em veículos oficiais ou na imprensa”.
E A PREFEITURA, O QUE DIZ?
A reportagem questionou a Secretaria Municipal de Planejamento da Prefeitura de Ribeirão Preto sobre a existência ou não do bairro Higienópolis, com a intenção de saber se uma suposta mudança de denominação teria algo a ver com adequações à cobrança de IPTU (Imposto Predial e Territorial Urbano), cuja alíquota muda conforme o bairro. A pasta se limitou a responder que “‘Vila Higienópolis’ corresponde a um antigo loteamento realizado no município, na região que compreende parte das avenidas Nove de Julho e Independência, ruas Campos Sales e Amadeu Amaral”. E para deixar ainda mais misteriosa a questão, conclui que é “importante esclarecer que o termo ‘bairro’ é denominação utilizada como referência postal de órgãos oficiais com base em delimitação realizada pelos Correios, que pode ou não coincidir com a delimitação dos loteamentos aprovados no município”.
Ouvidos também moradores da região delimitada pela Prefeitura como Vila Higienópolis, todos foram enfáticos: “Aqui é Vila Seixas”. Márcio Andrade, por exemplo, que mora há cinco anos em um prédio na rua Vicente de Carvalho, entre as ruas Campos Salles e Rui Barbosa, conta que sempre acreditou que a Vila Seixas começava a partir do ponto que acaba o Centro. E sobre o Higienópolis? “Confesso que ouvi falar, mas não sei onde fica ao certo”, diz ele.
No site oficial da prefeitura há um documento da Secretaria Municipal de Cultura, chamado de ‘Guia de Monumentos em Lugares Públicos’. Nele, as obras estão catalogadas por bairros. Além dos tradicionais Campos Elíseos e Vila Tibério, é possível encontrar um capítulo para o Higienópolis e outro para o Centro. O obelisco em homenagem ao centenário da Independência do Brasil, entre as avenidas Nove de Julho e Independência, e o busto de Salvador Spadoni, que dá nome à praça revitalizada recentemente, após a construção do túnel que leva os motoristas à avenida Presidente Vargas, são catalogadas no Higienópolis.
Questionada se houve ou não alguma alteração em denominação de bairro, a pasta preferiu o silêncio.
Fomos então até os Correios para tentar esclarecer a questão. “A denominação dos logradouros e os limites dos bairros são definidos pelo Município. Para implantar novos Códigos de Endereço Postais (CEPs), os Correios precisam receber, oficialmente, mapas atualizados, legislação correlata e relação de logradouros” foi a primeira resposta, por nota, da instituição.
O CEP é um código usado pelos serviços postais em todo o mundo para organizar e localizar endereços de forma numérica ou por letras, como se cada casa tivesse sua placa, semelhante a um carro. Cada país tem seu próprio sistema de código postal. No Brasil, por exemplo, o CEP é um conjunto de oito números.
Para ajudar a localizar como cada endereço é reconhecido oficialmente pela principal empresa postal do país, a assessoria de imprensa dos Correios orientou a reportagem a pesquisar o CEP dos moradores e comerciantes que se perguntam em qual bairro estão no site oficial dos Correios. Nós fizemos a pesquisa e descobrimos que, para os Correios, todos que moram no conhecido quadrilátero central, moram no Centro. Consultada novamente se essa não seria uma evidência da existência do bairro, a Administração Municipal não retornou até o fechamento desta matéria.
Outra alternativa foi consultar o Google, maior serviço de pesquisa da internet. Por lá, o bairro Higienópolis também não existe. As informações e os nomes de ruas e bairros informados pelo site são definidos por uma combinação de fontes: a equipe do Google, que utiliza dados oficiais de autoridades governamentais e registros públicos; governos locais e agências de cartografia, que fornecem dados oficiais; e usuários, que podem sugerir correções e adicionar novos locais. Seja em um passado não tão distante ou apenas no imaginário popular, “o bairro Higienópolis existe e sempre vai existir”, acredita Silvia.
AVENIDA NOVE DE JULHO
Os primeiros trechos da atual Avenida Nove de Julho foram inaugurados em 7 de setembro de 1922, pelo então prefeito João Rodrigues Guião. A avenida, protegida pelo Conselho Municipal de Preservação do Patrimônio Cultural (Conppac) e conhecida por suas sibipirunas, começou a ser planejada em 1921 e foi inicialmente chamada de Avenida Independência.
Anos depois, com a edição do Ato nº 60 em 25/07/1934, a avenida foi renomeada para Nove de Julho em homenagem à Revolução Constitucionalista de São Paulo de 1932. A partir de 1950, a avenida ganhou notoriedade, com residências de estilo moderno surgindo na região. Com o tempo, a área perdeu seu caráter residencial e se transformou em um importante centro financeiro, abrigando quase 30 agências de bancos comerciais e de investimentos, além de seguradoras e consórcios em seus pouco mais de 2 km de extensão.
Considerada um ponto de referência tombado pelo patrimônio histórico, a Nove de Julho iniciou seu processo de revitalização em junho do ano passado, com previsão de término em um ano. No entanto, as obras foram interrompidas em dezembro, quando a prefeitura rescindiu o contrato com a empresa responsável pelo projeto após a conclusão de apenas 8% dos trabalhos, quando o esperado era 40% em seis meses.
Uma nova empresa foi contratada e retomou os trabalhos em maio deste ano. A previsão é de que a reforma acabe até maio do ano que vem. “A obra está sendo monitorada continuamente. Nosso objetivo é entregar essa restauração tão aguardada para a cidade”, garante o secretário de Obras, Pedro Luiz Pegoraro.
Dividida em cinco etapas principais, a obra, que se estende da avenida Independência até a rua Tibiriçá, inclui também intervenções no canteiro central e prevê, principalmente, a substituição dos paralelepípedos, tombados em 2008. Desde o início da obra, dezenas de comércios fecharam ou se mudaram da avenida e o cenário é bem diferente dos tempos áureos da região.
Fotos: Luan Porto