Entrevista: Matheus Rozário Matioli

Entrevista: Matheus Rozário Matioli

Psicólogo Matheus Rozário Matioli defende que pais observem mais suas crianças e passem com elas tempo de qualidade, mais do que em quantidade

Às vésperas das férias escolares de julho – apenas a segunda após o isolamento social da pandemia de coronavírus –, o maior conselho que o psicólogo clínico e professor universitário Matheus Rozário Matioli pode dar a pais e filhos pequenos é que aproveitem para passar mais tempo juntos.

 

“É o momento de estreitar o laço entre o adulto e a criança. Momento em que os pais, os responsáveis, a família, podem estar mais próximos. E essa proximidade pode desencadear conversas, o brincar junto, o verificar como a criança está se desenvolvendo”, afirma.

 

Psicanalista de orientação, Matioli é professor, supervisor e pesquisador – principalmente na área de Ludoterapia – na Universidade de Ribeirão Preto (Unaerp) desde 2018. Ainda coordena o curso e a Clínica de Psicologia da universidade desde 2022. Convidado a falar sobre a importância do brincar para esta edição, também comentou sobre as sequelas deixadas nas crianças que vivenciaram o isolamento da pandemia, os riscos do acesso excessivo a dispositivos eletrônicos na vida das crianças, entre outros assuntos relacionados. Acompanhe:

 

Já que estamos às vésperas de um período de férias escolares, vamos começar falando sobre a importância do lazer e do brincar na vida das crianças. Qual a relevância do ponto de vista de seu desenvolvimentos psíquico, comportamental e até de saúde?

O brincar é extremamente importante, tanto por ser uma questão de lazer, mas também por ter todo um processo psicológico, emocional e comportamental atrelado a isso. Quando a criança tem a possibilidade do brincar, de se utilizar do jogo, dos brinquedos, ela tem também a possibilidade de colocar para fora, de externalizar ou elaborar várias coisas que estão acontecendo com ela. Seja uma questão conflituosa ou alguma coisa que ela está vivenciando. Através da palavra falada ela ainda não tem, por conta da idade, a capacidade de expressar – até [por conta] do desenvolvimento dela – de colocar para fora. O brincar pode trazer esse recurso pra gente. Aqui na clínica, atendo majoritariamente crianças e adolescentes. Pela linha teórica que sigo, trabalho a ludoterapia, ou seja, um atendimento, uma forma de terapêutica baseada nos elementos pictográficos: a brincadeira, o jogo, o desenho, a interpretação de personagens. Por aí a gente consegue verificar alguma questão que os pais trazem como uma problemática. Às vezes a criança não verbaliza, mas na hora da brincadeira isso aparece.

 

Estas férias de julho serão apenas a segunda após o isolamento social da pandemia. Com base em seus atendimentos na clínica, que impactos percebe que o período deixou nas crianças?

A gente vivenciou várias questões, tanto de ansiedade como de crianças muito agitadas por ficarem em casa. Imagine: para nós, que somos adultos, já foi incômodo e estranho de uma hora para a outra não poder mais ver nossos amigos, trabalhar presencialmente, ver a família. Para a criança isso reflete de uma maneira também impactante. Algumas pessoas pensam: “ah, é criança, não está entendendo o que está acontecendo”; “é criança, vai adorar ficar em casa e não ter que ir para a escola”. E não era disso que se tratava. Quando a gente conversava com as crianças, na época [ouvia]: “senti falta dos amigos, dos professores, de família, de ir para a casa da vó, de viajar, de domingo ir almoçar na casa dos meus avós”. Coisas que elas não tinham mais. Ao mesmo tempo, a gente escutou muito que a pandemia veio exacerbar muitas coisas em nossa vida. Algumas crianças se queixaram muito de que só se falava sobre a covid. “E as outras coisas?”. Tive um paciente na época, um menininho, que falava assim: “agora todo mundo só fala da covid, ninguém mais pergunta do meu medo do escuro”.

 

OK. A covid foi preocupante, uma coisa super ruim, mas também se perdeu um pouco as demandas e as queixas inerentes à criança. A criança que tem medo continuou com o medo dela. A gente viu um impacto comportamental bastante grande porque os pais precisaram ficar em casa com os filhos. Muitos – quase toda a maioria – só trabalhando rodeado por tecnologia. As escolas precisaram se adaptar ao ensino à distância. Os pais não estavam preparados para isso, então a gente viu questões escolares muito fortes aparecendo. Questões de dificuldade de escrita e leitura. A gente também percebeu, depois que voltou para o presencial, crianças com dificuldade na interação social.

 

Aí já entramos no terreno das sequelas, não é?

Exatamente. Dificuldade de conversar com o outro. Crianças começaram a ficar isoladas, crianças pequenas tiveram dificuldades na fala. Eu posso dizer isso por conta do meu filho, que nasceu em 2019 e desde os quatro meses já ia para a escola. Na época da pandemia, ele ficou em casa com a gente – dois psicólogos em casa teoricamente sabendo como se faz [risos] – e quando ele voltou para a escola a coordenadora chamou e falou: “olha, ele está repetindo muito as palavras, está com ecolalia [forma de afasia em que o paciente repete mecanicamente palavras ou frases que ouve] e com dificuldade de se relacionar com as outras crianças. Precisou ir para a fonoaudióloga. Dois psicólogos em casa achavam que estavam fazendo tudo certo, mas o que a gente não tinha? Outra criança em casa. Era só ele. Ele tinha as aulinhas dele online, então todos os dias ele encontrava os amiguinhos virtualmente, fazia algumas atividades... Mas nada substitui o contato, o estar com o outro presencialmente.

 

Vou aproveitar esse gancho para pedir que fale um pouco sobre a importância do ‘sair para o mundo’, não ter só lazer entre paredes.

Bom, hoje a gente vivencia esse turbilhão das tecnologias, não é? É TV, celular, tablet, videogame... sabemos o quanto isso prejudica a questão social e várias outras. Se a gente pegar artigos da Sociedade Brasileira de Pediatria vão estar lá as questões de cognição e desenvolvimento psicológico [prejudicadas pelo acesso exagerado a dispositivos tecnológicos]. E, às vezes, os pais têm uma certa dificuldade quando a gente fala assim: “sai com o seu filho!”, porque associam a gastos financeiros. Mas sair, às vezes, é dar uma volta no quarteirão, ir a uma praça perto da sua casa. Porque ali a criança pode ter contato com outra criança. Eu acho que o desafio atual é justamente esse: conseguir colocar um pouco na cabeça desses responsáveis a importância de a criança estar em contato com o outro. E pode ser o vizinho, alguém que ela encontra descendo o prédio.

 

A partir de que ponto acha que o acesso de crianças a dispositivos eletrônicos em seu tempo livre pode ser prejudicial? E em qual medida pode ser saudável, já que hoje em dia tornaram-se necessidade em alguns casos.

Se a gente pegar, por exemplo, o que a literatura médica, principalmente da Sociedade Brasileira de Pediatria, coloca para a gente, temos um escalonamento: crianças menores de 2 anos não podem ter contato com telas. Aí começa: de 2 a 5, pode até 1 hora por dia; de 6 a 10, até 2h/dia; de 11 a 18, 3h/dia. Isso é bem hipotético, porque é difícil controlar. Hoje, numa escola de Ensino Fundamental e Médio, muitas vezes a criança/adolescente estuda pelo tablet. Não quer dizer que todas terão problemas, porque cada caso é um caso. O que eu acho: quanto mais a gente conseguir afastar os pequenos [desses dispositivos], melhor! O importante é a gente observar o momento em que a criança deixa de fazer coisas para ficar no tablet e/ou celular.

 

Mais uma vez a questão de observar sua criança.

Exatamente. Assim: “meu filho come com o celular do lado”. É estranho! Ou: “meu filho fica na frente da televisão porque em casa todo mundo senta para comer na sala”. Não! Tem que sentar à mesa. Ou: “meu filho agora não pode ficar sem o celular porque briga, não estuda e ele tem que jogar, se reunir com os amigos para passar por essa fase”. Aí começa a ser um problema. Quando gente começa a ver que a tela começa a crescer demais da vida da criança ou adolescente, aí é o momento de intervenção.

 

Concorda com estudos que culpam esses dispositivos por criarem uma geração de ansiosos?

Temos que observar o caso a caso. Não necessariamente uma criança que fica muito tempo no celular vai desenvolver ansiedade. Não é [relação de] causa e consequência. Tem que verificar o ambiente e a forma como a criança se relaciona com várias outras coisas. Estou com muita vontade de assistir [ao filme] “Divertida Mente 2” porque tem lá a emoção da vergonha, que é o rapazinho todo encapuçado com um celular na mão.

 

 

Alguma recomendação para pais e crianças nestas férias escolares?

Se for possível, é o momento de estreitar o laço entre o adulto e a criança. Momento em que os pais, os responsáveis, a família podem estar mais próximos. E essa proximidade pode desencadear conversas, o brincar junto, o verificar como a criança está se desenvolvendo. A gente fala muito sobre os prejuízos da criança diante do celular, mas e os prejuízos do adulto também? Há pais que me perguntam quantas horas eles têm que dedicar ao filho. Respondo que, às vezes, 1 hora em que a pessoa está inteiramente com seu filho é melhor que 3h em que o filho fica ao seu lado enquanto ele está ao celular. Porque, na realidade, esses pais não estão de fato com o filho.

 

É qualificar, não quantificar, né?

É e não custa nada. É de graça.

 


Foto: Luan Porto/Revide

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