
CICATRIZES
Marcela da Fonseca Ferreira
Patrícia Pereira
A paisagem atingida pela queimada ganha aspectos próprios.
Sua coloração se altera, prevalecem o preto e o cinza em sua cobertura vegetal, os animais são gravemente atingidos - morrem, o solo - rico em nutrientes - sofre perda significativa de seus organismos, a água do subsolo fica contaminada.
Nessa paisagem queimada, é possível detectar cicatrizes. Marcas inconfundíveis da devastação e da força humana.
Quando essas forças destrutivas, que se materializam no fogo, irrompem e se tornam visíveis, como interpretá-las?
O mapeamento de cicatrizes de queimadas em grandes áreas é essencial para entender os danos causados e planejar a recuperação do meio ambiente.
Já as cicatrizes impostas a nós pela dinâmica desse processo, como entendê-las?
Como compreender que vários avisos sobre o risco de focos de incêndio foram negligenciados pelo Governo do Estado, que agora monta um Gabinete de Crise para lidar com as consequências, quando deveria ter atuado na prevenção?
Há duas décadas, órgãos ligados às condições climáticas divulgam, sistematicamente, dados sobre o déficit de água no Brasil. Mais de 110 milhões de hectares de vegetação nativa foram devastados no país desde 1985.
A estação seca, característica dos climas tropicais, apresenta-se cada vez mais precocemente no território paulista.
Como aceitar uma explicação natural de um processo que é, na verdade, político-econômico?
Nossas políticas ambientais, leis e mais leis que regulam o uso do fogo nos canaviais, que determinam procedimentos administrativos que obrigam a comunicação prévia dessas práticas, o aviso à comunidade, a delimitação da área, a supervisão do processo.
Tudo isso foi negligenciado.
Será tão difícil de enxergar que sempre que o poder estatal se identifica com o poder econômico, é a sociedade e o Estado Democrático de Direito que perdem? Devemos exigir a concretização dos direitos fundamentais e as condições para impedir que alguns ajam contra esses direitos.
A sociedade atingida pela queimada também ganha aspectos próprios.
Ela se desequilibra. O fogo representa a perda de algo importante, deixamos de ser levados em conta no jogo econômico. Nossas vidas, nossos entes queridos, nosso bem-estar, nossas casas, nosso descanso, nossos bichos - tudo pode ser arriscado em favor daqueles que definem o que é a verdade e o que é importante.
Ela desconfia. Repensa sua crença no modelo de contrato civil neoliberal, em que os sujeitos não assumem responsabilidade pelos seus atos. Os focos de incêndio somaram 2316 pontos diferentes entre os dias 23 e 24 de agosto; sete vezes maior que o número total de focos de agosto do ano passado.
100% das queimadas são provocadas pelo homem.
Não podemos aceitar que, depois desse fogo, dessas chamas, alguém pergunte: “E daí’?
E daí que toda a cidade ficou envolta em fumaça e nuvens carregadas de partículas tóxicas?
E daí que crianças, idosos e pessoas com problemas respiratórios adoeceram?
E daí que nossas casas foram tomadas por fuligem e fumaça a partir dessa formação predatória instituída como agronegócio?
E daí que pessoas morreram em acidentes nas estradas invadidas pelas chamas, cegadas em sua visão?
Na sociedade queimada, é possível detectar cicatrizes. Marcas inconfundíveis da devastação econômica e da violência simbólica.
E quando, de fato, compreendermos que não há mais volta, é possível perceber outro ponto a ser levado em consideração.
A catástrofe POLÍTICO-AMBIENTAL que se aproxima cada dia mais nos mostra que a melhor defesa para as cicatrizes é a luta para o funcionamento da democracia.
Assim, garantir um voto consciente em uma eleição é uma ação climática. O combate à desigualdade, a luta contra a máquina de ódio na internet, a defesa da igualdade de raça e gênero, a promoção, o respeito pelas leis e sua aplicação, o desarmamento… tudo isso se torna uma ação climática.
Para vencermos o fogo, que nos marca com cicatrizes permanentes, precisamos reconhecer o autoritarismo que emana das labaredas, e lutar contra a imposição da destruição.
Trabalharmos juntos a partir de nossa indignação, de nossos direitos, para convertermos a injustiça em prática transformadora, prática que só pode existir de forma justa, no fortalecimento do processo democrático.